A educação sexual deve estar no currículo escolar na opinião de 73% dos brasileiros, 70% têm maior confiança em civis do que militares para trabalhar em escolas e em 93% dos casos deve respeitar todas as religiões. Por outro lado, 56% concorda que os professores devem evitar falar de política na sala de aula. Os dados foram divulgados pelo Instituto Datafolha no dia 3 de julho e ouviu cerca de duas mil pessoas em 130 municípios. Ainda assim, pautas conservadoras têm se atualizado e preocupam educadores
Juliana Passos – EPSJV/Fiocruz
Aprovação do homeschooling pela Câmara dos Deputados, o avanço da militarização em escolas municipais e estaduais e a retirada de itens que detalhavam as proibições de práticas preconceituosas do edital do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) estão entre os desdobramentos recentes das investidas do conservadorismo na educação brasileira. O que essas pautas carregam em comum, na visão de Romualdo Portela, professor na Universidade de São Paulo (USP), é a defesa da escola como um espaço que promove “uma visão de mundo menos plural”. Fernando Penna, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), acrescenta que se trata de uma reação aos avanços de um “imaginário igualitário”.
‘Partido’ contra a diversidade
Um exemplo, segundo Penna, é a reação a iniciativas que visam fazer da escola um ambiente de respeito e tolerância à diversidade religiosa, sexual e de gênero, entre outras. Entre essas reações, ele cita as acusações de que os livros didáticos que cumprem a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira, prevista na lei nº 10.639/2003, estariam fazendo apologia às religiões de matriz africana. “Esses movimentos vão dizer que os livros didáticos estão fazendo doutrinação religiosa de candomblé e umbanda. Também tivemos a elaboração de uma grande campanha chamada ‘Brasil Sem Homofobia’, que estava se convertendo em uma iniciativa didática chamada ‘Escola Sem Homofobia’, mas que foi apelidada [pelos setores conservadores] de ‘kit gay’ e que nunca chegou a ser distribuída nas escolas”, relembra.
Não por acaso, esses são os principais pontos atacados pelo Projeto de Lei nº 7.180, de 2014, pelo qual o movimento Escola sem Partido, criado dez anos antes, ganhou visibilidade nacional. O objetivo do PL – que tem apenas duas páginas, foi desarquivado em 2021 e ao qual foram apensadas inúmeras outras propostas que seguem a mesma linha – é alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para incluir, como princípio do ensino, o “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. No artigo 206, a Constituição Federal elenca, como princípios do ensino a ser ministrado no Brasil, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e o “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”.
Anos antes, em 2012, o Escola sem Partido comemorou a não inclusão de uma meta para o combate a diversos tipos de desigualdades, inclusive de gênero, no Plano Nacional de Educação (PNE). “O Escola Sem Partido tratou essa não inclusão como uma aprovação da proibição da discussão de gênero, mas não é nada disso, [o PNE] só não tem a cláusula explícita”, comenta Fernando Penna. Tempos depois, a proposta se ampliou e o movimento capilarizou projetos semelhantes em diversos estados e municípios: tendo como referência principal as “convicções religiosas ou morais dos pais e responsáveis”, o texto visava proibir o que chamava de “prática de doutrinação política e ideológica nas escolas”. No caso mais emblemático, foi aprovado no estado de Alagoas um projeto com o nome de ‘Escola Livre’ (nº 7.800/2016), mas a lei foi revogada depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5537. A decisão é entendida como um marco para a interrupção das ações do Escola sem Partido. Portela faz questão de ressaltar que, ao contrário do que esses movimentos dizem sobre si mesmos, essa concepção da escola como “doutrinadora” vai na contramão do liberalismo, que, desde o início do século 20, segundo o professor, defende uma escola “participativa e dialógica”. “Eles não são liberais do ponto de vista político, são autoritários”, defende.
Apesar do recolhimento do movimento, o medo permanece. É o que mostra um estudo que ouviu 817 professores de todo país em 2021. Do total, 64,7% disseram que já sofreram assédio, perseguição ou censura na profissão de educador e 82% se sentem ameaçados ou perseguidos no contexto atual do país. No entanto, não é fácil mapear essas ameaças. “O neoconservadorismo não está interessado em levar várias pessoas para a justiça, mas muito mais interessado em causar um pânico coletivo. Então, se você pega a denúncia de um professor ou uma professora, isso vai ser amplamente divulgado. Mesmo que depois essa professora [no feminino por representar a grande maioria da categoria] consiga provar sua inocência, todo o restante dos professores vai ficar com medo de passar por aquilo que aquela professora passou”, diz a coordenadora do estudo e professora do Instituto Federal do Rio Janeiro (IFRJ), Pâmela Passos.
Reação conservadora
As ações conservadoras não se limitam às escolas, mas atingem pautas relacionadas aos Direitos Humanos como um todo. E, segundo vários pesquisadores, isso não é algo recente. Em artigo publicado em 2018, a cientista política Flávia Biroli recupera os avanços da democracia no Brasil, como a aprovação da Constituição Cidadã em 1988 e a consequente politização da sociedade em torno das questões de direitos reprodutivos, raça e gênero. Mas ela ressalta que, ao mesmo tempo em que os direitos avançavam, constituíam-se reações conservadoras.
E esse movimento não ocorreu apenas no Brasil. Foi, segundo Biroli, uma resposta à temática de gênero e direitos reprodutivos que na década de 1990 ganhou grande impulso e centralidade em Conferências da Organização das Nações Unidas (ONU). São destaques as Conferências do Cairo (1994), também conhecida como Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), e de Pequim (1995). “A partir da CIPD, as políticas e os programas de população deixaram de centrar-se no controle do crescimento populacional como condição para a melhoria da situação econômica e social dos países, e passaram a reconhecer o pleno exercício dos direitos humanos e a ampliação dos meios de ação da mulher como fatores determinantes da qualidade de vida dos indivíduos. Nesta perspectiva, delegados de todas as regiões e culturas concordaram que a saúde reprodutiva é um direito humano e um elemento fundamental da igualdade de gênero”, escreveu Tânia Patriota, assessora do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA Brasil), em documento de balanço sobre o evento. No ano seguinte, foi realizada a IV Conferência Mundial das Mulheres, em Pequim, que decidiu mudar o foco da mulher para o conceito de gênero, “reconhecendo que toda a estrutura da sociedade, e todas as relações entre homens e mulheres dentro dela, tiveram que ser reavaliados”, como explica a página da ONU Mulheres.
O avanço dessas discussões provocou contestações, em especial da Igreja Católica, que já na década de 1990 se posicionou contra o avanço dos debates sobre gênero e direitos reprodutivos. No livro ‘Gênero, Neoconservadorismo e Democracia’, Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos Machado recuperam a reação da Igreja Católica e, embora registrem que o termo “ideologia de gênero” já estava sendo utilizado por intelectuais argentinos e estadunidenses, explicam que a palavra aparece em documentos oficiais da Igreja pela primeira vez em 1998, com a divulgação do informe ‘Ideologia de gênero: seus perigos e alcances’, divulgado pela Comissão da Mulher da Conferência Episcopal Peruana. Isabela Kalil e Sônia Corrêa também destacam as reações católicas e evangélicas à temática de gênero e direitos reprodutivos no livro ‘Políticas Antigénero en America Latina: Brasil’. Segundo elas, no Brasil, esse movimento avança principalmente a partir da segunda metade dos anos 2000, apesar de as políticas antigênero já estarem mais disseminadas nos Estados Unidos e na Argentina. O trabalho incluiu o mapeamento sobre a utilização do termo “ideologia de gênero” realizado pela pesquisadora Carla Castro Gomes e ajuda a visualizar o protagonismo das religiões na mobilização em torno desse tema. O levantamento foi feito em 34 portais de notícias católicos e 16 evangélicos entre 2007 e 2018 e mostra que os primeiros registros do termo aparecem em páginas católicas, com pico em 2015. A partir desse ano, os evangélicos assumem a liderança no uso do termo, momento de capilarização dos projetos do Escola Sem Partido. É justamente ao falar de Educação, que os jornais de grande circulação também monitorados pelo estudo (Folha de S. Paulo e O Globo) utilizam o termo, ao tratar do debate público em torno das denúncias de “doutrinação” nas escolas.
Bancada religiosa
A bancada evangélica tem sido importante apoiadora dos projetos relacionados à “ideologia de gênero”, homeschooling e militarização das escolas. E mais uma vez, esse não é um movimento novo. “Desde 1986 vem se construindo um braço muito importante das igrejas no Brasil em termos de política. Naquele ano, foram eleitos 33 deputados e senadores de tradição evangélica”, diz o professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Fábio Py, que acrescenta: “Todos eles pertencem às grandes corporações religiosas evangélicas, aquelas com mais de 20 templos, mais de 100 mil pessoas que frequentam essas comunidades e que são responsáveis pela mobilização e articulação das campanhas eleitorais desde 1986. A partir daí, essa bancada evangélica vai crescendo”, detalha. Atualmente, 195 deputados e oito senadores formam a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) que, apesar do nome, é composta por 43% de católicos e 46% de evangélicos, de acordo com a plataforma Religião e Poder. Vale lembrar que para formalizar uma frente é preciso ter ao menos um terço de assinaturas entre os congressistas eleitos mas que, nesse caso, nem todos que apoiam são propriamente religiosos. Dados que fazem jus a essa afirmação são os de que 70 deputados (39%) da Frente Evangélica também compõem a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FPMA) e 85 deputados (46%) a Frente Parlamentar Católica (FPC). Ainda assim, no cálculo de Fábio Py, a bancada religiosa consegue reunir em torno de 360 congressistas.
Entre as pautas comuns da Frente está a segurança pública, segundo boletim do Observatório Legislativo Brasileiro (OBL), vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), divulgado no final de maio deste ano. O estudo também acrescenta que os parlamentares da Frente participaram de 40% dos projetos relacionados a costumes apresentados no Congresso, apesar de não terem sido os propositores. O professor da Uenf argumenta que muito desse protagonismo conservador foi alavancado pela presença de missionários vindos do sul dos Estados Unidos, em especial no início dos anos 2000, com a chegada de George W. Bush à presidência. A vinda desses missionários, explica Py, contribuiu para pautar questões religiosas conservadoras e ultraconservadoras como o homeschooling, o armamento da população e um modelo único de família, formado por um homem e mulher e dois filhos, e de acordo com o professor da Uenf, referencialmente um menino e uma menina. Entre outras ações, diz o professor, esse movimento influenciou o lançamento, em 2018, de uma cartilha intitulada ‘Viva a Diferença!’, organizada pela Convenção Batista Brasileira e destinada às famílias cristãs. No documento, disponível para reprodução livre, é ensinado às crianças que meninos e meninas são biologicamente diferentes e há uma vontade divina para que permaneçam no sexo e gênero no qual nasceram biologicamente. Embora muitas derivações das igrejas evangélicas tenham surgido nos últimos anos, o pesquisador da Uenf explica que as igrejas mais tradicionais são as principais responsáveis por pautar politicamente as ideias conservadoras e por formar as demais.
Apesar do grande alcance e capacidade de influência, o pesquisador lembra que há muitas igrejas comunitárias em que a defesa desses grandes temas não é homogênea. “As pequenas igrejas que estão nas favelas, no meio rural, nas periferias do Brasil, apresentam outros posicionamentos em relação a homeschooling, em relação ao armamento. Este segundo é algo muito sensível nas periferias: as famílias das igrejas periféricas são absolutamente contrárias ao armamento, porque sentem diretamente o peso da polícia batendo na casa”, pondera. Essa diferença de posicionamento, em especial em relação à escolarização domiciliar, foi tema de coluna do pesquisador Juliano Spyer na Folha de S. Paulo. No artigo, Spyer apresenta uma série de entrevistas com pastores que pregam em regiões periféricas que afirmam desconhecer o tratamento dessas pautas em suas áreas de atuação.
De olho no material didático
Uma investida conservadora mais recente sobre a educação brasileira foi a mudança no edital do PNLD, o Programa Nacional do Livro Didático, para 2023, que foi divulgado em 2021. Presente no edital do PNLD de 2019, a proibição explícita de “abordar temática de gênero segundo uma perspectiva sexista não igualitária, inclusive no que diz respeito à homo e transfobia” foi suprimida. Já o trecho que detalhava a proibição dos preconceitos que não podem constar nos livros foi substituído por “estar livre de preconceitos ou discriminações de qualquer ordem” e “estar livre da promoção da violência ou da violação dos direitos humanos”. A análise foi feita pela pesquisadora e bacharel em Direito Fernanda Vick: “Identificar a engenharia dos efeitos jurídicos na política pública e como eles vão sendo produzidos é um trabalho ao qual eu me dedico e, ao comparar os dois últimos editais, pude perceber que juridicamente tinha um problema grave que parecia sutil”, diz a advogada e pesquisadora na USP.
Ela explica que os editais em geral são muito genéricos para garantir a pluralidade de ensino, daí a importância de delimitar o que não pode estar presente como, por exemplo, obras sexistas. “Antes você excluía uma obra que tivesse apologia religiosa ou política, hoje não tem nada disso, tem uma regra generalizante dizendo que não pode discriminar, que a obra que discriminar não vai ser escolhida e que tem que valorizar as diferentes contribuições de mulheres e homens, mas não fala da questão de gênero”, diz. A mudança nos critérios motivou a organização Ação Educativa a mover uma ação contra o edital, mas apenas em 5 de maio deste ano o Ministério Público se pronunciou de forma favorável à ação, momento em que o edital já estava em estágio avançado.
Em um balanço sobre ações de perseguição a professores da educação básica, o relatório da ONG Human Rights Watch, lançado em maio, identificou 217 projetos de lei criados e aprovados no Brasil relacionados à proibição da abordagem de questões de gênero e sexualidade. O relatório mapeou 17 Projetos de Lei (PL) apresentados entre 2014 e 2020 que tinham a intenção de proibir de forma direta ou indireta a abordagem desses conteúdos. Dentre eles, 15 estavam em trâmite em outubro de 2021 e os outros dois foram retirados por seus proponentes ou arquivados. O documento enfatiza que a aprovação desses projetos representaria “grave retrocesso” em relação à legislação brasileira que apoia a educação sobre gênero e sexualidade”.
No âmbito estadual, dos 31 projetos encontrados em 16 casas legislativas, apenas oito permanecem tramitando, segundo análise realizada até fevereiro de 2022. Embora o STF tenha derrubado a lei do Escola sem Partido em Alagoas, o Ceará possui legislação em vigor que “impede, sob quaisquer pretextos, a utilização de ideologia de gênero na educação estadual”, de acordo com o Plano Estadual de Educação vigente de 2016 a 2024. O estudo mostra ainda que 169 municípios votaram projetos nesse sentido, mas apenas 20 aprovaram. Entre eles, aquele que tem a maior população é a cidade de Nova Iguaçu, localizada na Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro. Mas o relatório também aponta que esse número pode estar subestimado por dificuldades de acessar os dados disponíveis dos 5.568 municípios brasileiros. Como forma de dimensionar essas ações para além dos projetos de leis, o relatório da ONG apresenta entrevistas com professores, ameaçados não só pelo conteúdo ministrado em sala de aula, como também por serem gays. Houve casos de abertura de processos disciplinares, ameaças anônimas por telefone e mesmo físicas. Embora não haja relatos de professores que foram condenados em processos administrativos, o texto ressalta que a sensação de medo permanece.
Militarização
Estágio máximo do processo de conservadorismo na educação. É assim que a professora Catarina Almeida Santos, da Universidade de Brasília (UnB), entende o avanço das escolas militarizadas no país. “Com a polícia dentro da escola, você consegue fazer o controle máximo do que os outros programas podem fazer em uma escala muito maior”, acrescenta. A crítica não é direcionada às escolas militares, mas sim às militarizadas ou cívico-militares. Apesar de próximos, na conjuntura brasileira atual, os termos não são sinônimos. A diferença é detalhada na dissertação de mestrado de Eduardo Junio Santos. Ele explica que a militarização na educação não significa transformar as escolas das redes municipais e estaduais num modelo semelhante às 15 escolas federais ou 58 estaduais militares, famosas pela infraestrutura, mas que são prioritariamente destinadas aos familiares de militares. No caso das federais, os recursos vêm do Ministério da Defesa, enquanto no caso das estaduais, além das taxas cobradas aos alunos, o vinculado principal é com a Secretaria de Segurança Pública, embora também existam acordos com a Secretaria de Educação. O que elas têm em comum é o fato de serem demandas das próprias corporações militares e constarem em seus organogramas. Já nas escolas militarizadas estaduais, o pesquisador não conseguiu definir as fontes prioritárias de recursos e acordos, enquanto nas municipais cívico-militares essa função está definida e pertence à Secretaria de Educação. “De maneira geral, observa-se nas fontes encontradas que os governos que militarizam escolas públicas alegam que se trata de uma política que transfere apenas a ‘gestão disciplinar’ para os militares, e que a ‘gestão pedagógica’ segue a cargo das respectivas secretarias de Educação”, escreve o pesquisador. Ele acrescenta que a novidade do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), criado em 2019 pelo governo federal, é dar “um caráter mais homogêneo e centralizado ao modelo”.
O trabalho de Eduardo Santos contabilizou 240 escolas militarizadas da década de 1990 até dezembro de 2019, das quais 155 são estaduais e 85 municipais. E ele já apontava o período atual como de ascensão de novas escolas desse tipo. O primeiro estado a militarizar as escolas foi o Mato Grosso, em 1990, seguido de Rondônia, no ano seguinte. Segundo os dados da dissertação, Goiás tem o maior número de escolas cívico-militares estaduais: um total de 60, com um crescimento a partir de 2013 e previsão de ampliação. Já a Bahia, que iniciou o processo em âmbito estadual em 2005, se destaca pelo número crescente de escolas municipais militarizadas. Santos registra 66, com previsão de ampliação. Uma reportagem da Ponte, divulgada em 22 de maio, informa que este número está em 98 e deve crescer. Outro estado que aposta na militarização é o Paraná. Em 2020, o governo anunciou a implementação de cerca de 200 escolas militarizadas, no entanto, em 2021 apenas 53 funcionavam nesse modelo. De acordo com reportagem da CBN, de 3 de setembro de 2021, o motivo foi a baixa procura de militares da reserva para trabalharem nessas escolas, como prevê o Pecim. A meta do governo do Paraná é próxima das 216 unidades que o governo federal estabeleceu para cumprir até 2023. De acordo com o Censo Escolar de 2021, o Brasil tem 178,4 mil estabelecimentos escolares.
A professora da UnB parte da dissertação de Santos para estimar que atualmente existam mais de 600 escolas cívico-militares pelo país e explica que a dificuldade do cálculo se deve à possibilidade de militarização por variadas maneiras e aprovações por municípios. De acordo com ela, apenas Sergipe ainda não registrou escolas militarizadas. Para que uma instituição passe para uma gestão compartilhada com os militares é preciso que a comunidade escolar aprove essa mudança, de acordo com o Pecim, um modelo que já era adotado por algumas escolas, ainda que não seja homogêneo. Entender o apoio à medida por parte das comunidades, para a pesquisadora, é uma tarefa complexa. Mas ela acredita que a adesão passe pela questão da segurança e da disciplina desejada pelos pais, além da melhor infraestrutura prometida por essas escolas. Este benefício, de acordo com ela, costuma vir da cobrança de mensalidade e da maior quantidade de pessoal disponível, dada a parceria civil-militar. Mas ela pondera, a partir das experiências anteriores de Goiás e Amazonas, que é comum o público dessas escolas mudar após a militarização, em especial pela cobrança de taxa de mensalidade. “O que significa que grande parte dos estudantes de escola pública não vão poder continuar nessas escolas, porque vão ter que pagar taxa”, diz. Outro aspecto restritivo, segundo Catarina Santos, está exemplificado em escolas militarizadas da Bahia, onde não podem ingressar alunos cuja idade não corresponda exatamente à série que eles vão cursar. De acordo com o último Censo Escolar, a taxa de distorção idade-série no estado é de 29%.
Catarina Santos explica que não há um padrão de atuação dessas escolas, que devem seguir os currículos determinados pelas redes estadual e municipal. No entanto, ainda que não haja disciplinas específicas, a “pedagogia de quartel” acompanha a rotina dos alunos. Essa disciplina militar forçou, por exemplo, alunos de uma escola em Goiás a passarem frio por não estarem com um casaco integrante do uniforme, pelo qual, inclusive, precisam pagar. Em outro episódio ocorrido este ano, um aluno de uma escola no Distrito Federal foi ameaçado por um Policial Militar. O caso, de repercussão nacional, motivou o Ministério Público do Distrito Federal a rever seu parecer de legalidade para as escolas militarizadas, uma decisão que anima a professora da UnB, também integrante da Frente Contra a Militarização das Escolas. Segundo ela, este não é o primeiro parecer contrário à militarização e a maior expectativa está no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida contra as escolas no Paraná. “Quando o STF julgar que militarizar a escola é inconstitucional, automaticamente criará jurisprudência para que isso seja barrado em todos os outros lugares”, vislumbra. Mas não há prazo, nem expectativa para que essa ação seja julgada.
Frentes de (re)ação
Embora existam experiências mais antigas, Fernando Penna aponta que a defesa da militarização de escolas foi um dos campos para o qual a pauta conservadora da educação se desviou mais recentemente, após a derrota do movimento Escola sem Partido no STF. Outra linha de ação, ainda segundo ele, foi o homeschooling, o ensino domiciliar. O projeto de lei que regulamenta o modelo (3.179/12) foi aprovado na Câmara dos Deputados em 19 de maio deste ano. Antes, decisão do STF diante do Recurso Extraordinário nº 888.815, que negou o ensino domiciliar a uma criança apenas por não haver legislação sobre o tema, já tinha definido que esse tipo de ensino não é inconstitucional. O próximo passo é a votação no Senado, mas o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), declarou que não terá pressa para votar o PL por se tratar de um tema polêmico que merece bastante discussão, como registrou reportagem do G1.
Apesar das particularidades da conjuntura nacional recente, o professor da USP enfatiza que essa agenda conservadora na educação não é exclusiva do Brasil. Ele, inclusive, se apoia em estudos realizados nos Estados Unidos para apontar o caráter conservador da proposta do homeschooling. O principal deles foi publicado por Elizabeth Bartholet, pesquisadora da Universidade de Harvard, em maio de 2020, em que ela aponta as crenças religiosas como a principal justificativa da opção pelo ensino domiciliar. Em entrevista ao site da Universidade, Bartholet destaca que o maior número de adeptos do modelo está relacionado com o crescimento de movimentos católicos e evangélicos nas últimas décadas. Portela pondera, no entanto, que, assim como as escolas militarizadas, a capilaridade alcançada pelo homeschooling, mesmo nos Estados Unidos, é restrita se comparada às ações contra as discussões de gênero e sexualidade no Brasil, o que não deixa de ser um motivo de preocupação. “Um critério bom para avaliar propostas para educação é identificar se determinada proposta amplia esse direito. Se não amplia, ela é problemática”, define.
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Foto: Natinho Rodrigues/SVM